Por Thaís Cardim
Por realizar a travessia inúmeras vezes, criei um verbo para dizer aos meus editores (e ao meu trabalho!) o que eu estaria fazendo naquele dia. Eu iria “catraiar”. Para mim, não era moleza catraiar: mesmo morando no litoral, morro de medo de barcos, mar e de qualquer profundidade que não me permita tocar o chão com os pés. Somado à minha labirintite, eu seria a última repórter que se candidataria a realizar essa matéria. Mas, quem disse que os repórteres querem as coisas fáceis? Assim fui eu rumo ao Mercado Municipal numa quarta-feira pela manhã.
A primeira dificuldade é o transporte até o local da travessia. Nenhuma linha de ônibus nos deixa no atracadouro do Mercado; o ponto mais próximo é na avenida Conselheiro Nébias. Temos que atravessar a pé toda aquela região, praticamente abandonada, formada por cortiços e pequenos comércios. Como vocês já sabem, não fui sozinha, até mesmo por recomendação de amigos. Muitos são assaltados por aquele pedaço e eu tomei o maior cuidado para tirar as fotos que ilustram a matéria. A qualquer movimentação estranha, guardava a câmera; fiz isso inúmeras vezes. Não há policiamento no local e a população de rua é grande. Sinceramente, não é um local onde eu me senti segura, principalmente por “não saber para onde correr”.
Após a travessia, nos receberam muito bem no atracadouro de Vicente de Carvalho. Sem marcarmos entrevista alguma, o presidente da Associação dos Catraieiros, Walter Ferreira, foi muito atencioso, mesmo em meio ao grande movimento de embarque e desembarque. Ferreira continua trabalhando como catraieiro, já que sua função na Associação não é remunerada.
Ao contrário do atracadouro santista, o do Guarujá é bastante movimentado. Como a travessia já é rotina, o atracadouro parece um grande encontro de amigos. Muitas vezes interromperam a nossa conversa com o presidente para comentar trivialidades como futebol, últimas notícias, clima, etc. Dá pra perceber que eles se tratam como uma família de muitos irmãos. Todos homens. “Mulheres já tentaram trabalhar na catraia. Teve um tempo que tivemos um homossexual operando uma barca, mas o pessoal não respeitava”, contou Ferreira.
Nesse nosso bate-papo surgiram várias histórias, mas a que realmente me interessou foi a saga dos filhos de Seu Ramos. Tanto que pedi que me levassem ao encontro deles. Por minha sorte, eles estavam “em terra”. Resumirei a história:
Os irmãos Fernando e Marcelo Ramos começaram a trabalhar como catraieiros muito jovens, quando a fiscalização da Capitania dos Portos ainda não era tão efetiva. Viravam noites trabalhando na travessia. Assim que o pai deles, que também era catraieiro, percebeu que Fernando e Marcelo estavam “se acomodando com a função”, vendeu o barco. “Isso aqui não era a vida que eu queria para os meus filhos. Sabia que, se eu continuasse sendo o dono dessa catraia, eles trabalhariam o resto da vida só com isso”, afirmou. Fernando já estava trabalhando “do outro lado do Estuário”, mas Marcelo teimou com o pai. Após a venda, passou a trabalhar para o novo dono do barco, deixando o pai bastante irritado. Mas não durou muito tempo. Logo o irmão encontrou uma vaga e Marcelo deixou a catraia.
Muitos e muitos cursos depois, os irmãos estão entre as mais altas patentes conseguidas na área em que atuam. E Marcelo recuperou o barco vendido pelo pai. Casado, pai de uma filha, ele afirma que, assim que ela crescer, vai trazê-la para conhecer o trabalho na catraia. “Se ela quiser seguir, não me incomodo”, afirma. Fernando, Marcelo e Seu Ramos são, agora, donos de três barcos que realizam a travessia, sendo que os irmãos contam com a ajuda do pai para fiscalizar o serviço de seus mestres catraieiros. Hoje, os dois são o orgulho da família e exemplo para os demais filhos de catraieiros. Por mais que tenham navegado por aí, confessam: não trocam Vicente de Carvalho por nenhum outro lugar do País.
Em minhas andanças pela garagem náutica, onde são consertados os barcos, me deparei com a questão: como todos esses barcos são abastecidos? Seu Ramos me levou até o “segredo”: uma bomba, como a dos postos de gasolina, preenche os tanques das catraias cm óleo diesel. Tudo muito controlado. Há uma planilha onde é anotada a quantidade abastecida e por qual barco. No final do mês, paga-se o combustível.
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